domingo, 7 de janeiro de 2024

Parcelado sem Juros, o ilusionismo que tomou conta do varejo e das vendas online

 



Nos últimos meses nós assistimos a um embate sobre as compras parceladas “sem juros”. De um lado o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, defendendo uma limitação da modalidade, visivelmente preocupado com o endividamento da população e a consequente rolagem das dívidas no cartão de crédito. E de outro lado as entidades representativas do comércio e bancos, lutando pela continuidade dos parcelamentos, pretensamente defendendo o direito do consumidor adquirir seus bens em suaves prestações.

A polêmica não é pequena. Dependendo da fonte consultada, estima-se que entre 70% a 75% das vendas do varejo sejam parceladas. A grande maioria parcelada “sem juros”.

Mas por que estou colocando o “sem juros” entre aspas?

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Existe parcelamento sem juros?

Vamos analisar dois anúncios do MercadoLivre, o paraíso do parcelado “sem juros”.

Veja no anúncio acima que existe um preço original de R$ 199,99 e um preço com desconto de 15%: R$ 169,99.

Existe a opção de compra em 12x de R$ 16,52. Calculando aqui na minha HP-12C, a taxa de juros praticada neste financiamento é de 2,45% ao mês.



Comandos na HP-12C:

Resultado: i = 2,45%


Procurei outros anúncios do mesmo produto e olha o que eu encontrei:


Nesse anúncio o mesmo produto está anunciado à vista por R$ 199,90 e pode ser comprado em 6x “sem juros” de R$ 33,32.

Repare aqui a artimanha:

Os anúncios parcelados “sem juros”, têm o seu preço à vista já com os juros embutidos.

Comparando o preço final nos dois parcelamentos:

  •  Primeiro anúncio (parcelado com juros): 12 x R$ 16,52 = R$ 198,24
  •  Segundo anúncio (parcelado “sem juros”): 6 x R$ 33,32 = R$ 199,92

Se analisar direitinho, o primeiro anúncio é até mais interessante, por ter a possibilidade de compra à vista por R$ 169,99 e o parcelamento mais longo, em 12 vezes.

No mundo real não existe parcelamento sem juros!

 

Que taxa de juros o mercado está praticando hoje?

Pesquisando vários outros anúncios no Mercado Livre e fazendo as contas, podemos estimar que o mercado está praticando uma taxa de juros em torno de 2,4% ao mês no financiamento de produtos e serviços.

Não existe nenhum motivo para acreditar que os parcelamentos “sem juros” não estejam com esta taxa embutida nos seus respectivos preços à vista.

 

Como se defender sendo consumidor?

Peça descontos à vista!

Mas que desconto pedir? Quando vale a pena comprar à vista?

Vou fazer umas simulações aqui, considerando um produto fictício que custe R$ 100,00 à vista, e que tenha taxa de juros de 2,4% ao mês nos financiamentos.

Vamos usar a lógica do vendedor para um parcelamento em 6x “sem juros”:

Preço à vista: R$ 100,00

Parcelamento considerando taxa de 2,4% ao mês: 6 x R$ 18,09 = R$ 108,54


Comandos na HP-12C:

Resultado: PMT = - R$ 18,09


Vejamos como ficaria o anúncio:

R$ 108,54 à vista ou 6 x R$ 18,09 sem juros.

Percebeu como e á pegadinha? O preço “a vista” já tem os juros embutidos.

Mas quanto pedir de desconto à vista?

Usando a função Δ% da HP-12C, concluímos que um desconto de 7,87% aplicado em R$ 108,54 nos daria um preço à vista de R$ 100,00.


Comandos na HP-12C:

Resultado: variação = -7,87%

 

Seguindo este mesmo raciocínio, eu deixo de presente aqui para você uma tabelinha indicando que desconto pedir em cada parcelamento “sem juros”. Vou arredondar os números para facilitar:


Nota: Valores válidos para as condições vigentes na data de publicação do artigo.


Parcelamento “sem juros” é uma estratégia de vendas válida?

Eu diria que sim. Tem aí um componente de “me engana que eu gosto...”, mas é inegável o apelo de venda do parcelamento “sem juros”. Não é à toa que mercado e bancos estão defendendo a continuidade desta modalidade com unhas e dentes.

Se as famílias estão chegando num patamar perigoso de endividamento, isso é basicamente uma questão de análise de risco de crédito. Se você conseguiu passar um parcelamento no cartão, é porque a operadora do cartão avaliou que você conseguirá pagar as parcelas.

Como uma consideração final, eu acredito que a liberdade econômica é um pilar fundamental do desenvolvimento e até da nossa vida em sociedade de forma mais ampla, mas confesso que me incomoda ler a expressão “sem juros”, quando sabemos que tem juros embutidos num parcelamento.

Estando do lado do vendedor ou do comprador, para sobreviver nesses tempos é vital ter um conhecimento básico de matemática financeira. Se aprofundar neste tema pode ser um dos seus objetivos de estudo para 2024.